Ana Regina Nogueira é fotógrafa desde 1972… artista de olhar múltiplo, surpreende-nos pela rara inventividade. Suas imagens revelam sua maestria em transitar entre o documental e o pessoal, em experimentação permanente com a linguagem… escrevem as curadoras de fotografia Angela Magalhães e Nadja Fonsêca Peregrino, que entrevistaram Ana Regina Nogueira, em 1996, dois anos após a fotógrafa ter se mudado do Rio de Janeiro para uma fazenda em Lavras, Minas Gerais.
Nascida nas Minas Gerais, que características regionais você destacaria em si mesma? Você estaria mais para desconfiada ou rebelde (sem causa)?
Penso que é impossível limitar alguém dentro de fronteiras regionais ou nacionais: somos isso ou aquilo, nascemos aqui ou acolá… Isso importa pouco. Esses julgamentos só criam bloqueios e separam-nos uns dos outros. Colocam-nos numa gaveta aqui, ora noutra ali, em alguma parte da mente-arquivo. Nesta sociedade separatista é melhor buscarmos os pontos de união entre os espaços, as culturas e pessoas, e não confirmar as diferenças. Nas Minas de horizontes distantes e montanhas onduladas, rios e trens passam, eternamente. Carregam uma poesia lenta, ritmada. Minas provoca um olhar lírico. Criamos como se fossemos encontrar a chave dos mistérios, escondida no profundo dos seus vales. Vivi por tanto tempo esquecida da minha terra, mas hoje deixo a barroca Gerais talhar os meus velhos olhos de algo novo, que parece surgir da pedra e da paciência. Eles almejam ser mais mineiros.
Que momentos são marcantes em sua infância?
Ao rever o meu trajeto pela infância, percebo, por um lado, os limites: pais, escola, cultura, e por outro, a descoberta do mundo encantado e silencioso criado no fundo dos reflexos nos assoalhos de madeira encerada, o mundo da luz filtrada por cortinas grossas ou dos cantos de penumbra. Minha memória é de luz, de imaginação e de devaneio. Pouco me interessei por brinquedos, mas convivi anos com seres de poucos centímetros de altura que habitavam uma vilazinha invisível entre minha cama e a escrivaninha. Também um gigante, maior que minha casa, me visitava vindo da direção do por do sol. Eu ficava na sacada a conversar com ele. Sonhei muito, dormindo e acordada: fui índia, dançarina e princesa. Na verdade, recordo-me mais das visões internas que dos acontecimentos cotidianos.
Na escola, que assuntos lhe prendiam mais a atenção?
Lembro-me de olhar para fora, pelas janelas, procurando algo que não estava nem nas palavras, nem nas matérias daquela sala de aula. Era um sacrifício ficar sentada frente a um quadro-negro. Queria saber mais, descobrir mais. Gostava de ler, era uma leitora ávida. Queria entender. Aos sete anos, ganhei, de uma tia especial, a reprodução de uma pintura impressionista de Degas, uma aula de ballet. O quadro com passe-partout vermelho foi dependurado na cabeceira da minha cama. Eu ficava deitada, mergulhada naquele retângulo bidimensional, a refletir: Como esse pedaço de papel pode me provocar tanta emoção?. Aos dez, meu avô ofereceu, para meu enlevo, à vovó, a Divina comédia ilustrada por Gustavo Doré. Herdei esse livro. Também comecei a colecionar os livrinhos ABC, da Tudor Publishing, sobre a História da Arte. Por não serem traduzidos, iniciei, com um dicionário, a aprender também espanhol e inglês. Foram chegando o fascínio por Chagall, Brügel, Bosh, o futurismo, o mundo das artes, a vida noturna, a fotografia, o cinema, as viagens, a bossa nova, o jazz, a música erudita ? minha preferida, atualmente.
Qual é a sua formação profissional?
Perguntava-me: será jornalismo, será arquitetura? Com vinte e um anos, morando em Paris, fui hospitalizada por dez dias. Ali a angústia, que hoje compreendo como a alma impulsionando a consciência a buscar explicações sobre a vida, me fez encontrar a resposta: a Psicologia. Foram infinitos meses de Freud e Laing, e eu sabia: não, não é só isso. E a fotografia chegou. Em companhia da câmera a busca continuou. Sou uma autodidata. Desde sempre preferi estudos paralelos, não oficiais. Assim encontrei grandes guias, alguns Grandes Iniciados, para me orientar: Trigueirinho, Jung, Fernando Pessoa, I Ching Yogananda, Cecília Meireles, Paul Brunton, a Mãe, Morya, e outros, extraordinários. Mas a Vida é a maior mestra. Precisamos sobretudo ler o livro da vida.
Em que momento a fotografia começou a ser, para você, um meio de expressão?
Aos quatorze anos, via livros e revistas especializados, sobretudo os importados, pois no Brasil quase não existiam publicações do gênero. Gil Prates, meu primeiro namorado, era um fotógrafo profissional. Eu o observava fotografar e depois revelar e ampliar seus filmes em preto e branco. Nosso assunto central sempre foi a imagem fotográfica. Morei um ano nos Estados Unidos, com dezessete, e fiz alguns filmes. Ao retornar, casei-me com o Gil e mudamos para Paris. Percorríamos galerias, discutíamos autores e estilos. Às vezes, eu tirava fotos em alguns de seus filmes ou apontava-lhe o que fotografar, o que nunca fazia, e… aquele vislumbre, tão perfeito, ficava perdido! Era tão envolvida pelas imagens, apesar de ainda fazer psicologia, que um amigo fotógrafo de São Paulo insistiu: “Ana, por que você não fotografa?”. Fiquei surpresa com a proposta inusitada, mas convidei outro amigo para modelo e parti cedinho para o subúrbio. Fiz meu primeiro filme sério, cuidadosamente fotometrado. Usava o fotômetro da máquina e o Lunasix. Abandonei a Psicologia. Criei amizade com uma Nikkormat FT e com uma lente 35 mm ? desde sempre a preferida. Fomos para os Estados Unidos e o México, por seis meses. Fiz vinte filmes. Cada imagem brotava, precisa e intensa, assinalando o que viria a desenvolver e criar pelos anos afora.
Qual a importância de sua vivência no exterior para o seu trabalho fotográfico?
Nos anos setenta e oitenta a fotografia começava a ser aceita como uma importante forma de expressão. Não havia muitas exposições fotográficas. Morei então cinco anos na Europa e quatro nos Estados Unidos. Em Nova Iorque vivi por dois anos a poucos quarteirões do ICP – Centro Internacional da Fotografia, onde essa era tratada com reverência e respeito. Eu acompanhava o movimento das galerias e dos museus. Via, olhava, revia, reavaliava. Foi fundamental também estudar a fotografia clássica e os olhares emergentes. E fotografar, fotografar, fotografar. Também revelar, ampliar e expor, publicar e mostrar meu portfólio (preparado em um laboratório à beira-mar, em Barra de São João, estado do Rio de Janeiro) para olhos treinados, que me estimularam a prosseguir, como os de Sue Davies, diretora da Photographer´s Gallery, em Londres, e Allan Porter, diretor da revista suíça Camera. Ambas, a galeria e a revista, tiveram um papel precursor e fundamental no meio fotográfico de então. Lançaram e influenciaram muitos fotógrafos. Foram pontos de encontro de olhares do planeta. A vida no exterior me confirmou que não tenho pátria. Sou terráquea, cidadã temporária do planeta. Os olhos físicos reconheceram semelhanças e diferenças e o coração aprendeu a amar mais. Fez-me perceber que a luz coagulada em filmes é uma projeção, uma expressão, de estados e desenvolvimentos interiores. O filme e o papel fotográficos são emulsionados com grãos de prata. A prata é feminina e inclusiva, como a lua e a alma. Colhe imagens e depois as irradia. A prata recebe qualquer qualidade, que queiramos lhe ofertar. Pode se tornar delicada, bruta, voz sutil, silenciosa, misteriosa ou urro delirante. Assim precisamos de discernimento e responsabilidade por nossas criações, pois a imagem pode se aliar ao conflito ou à pacificação.
Que fotógrafos lhe serviram como referência visual e como essas influências estão concretizadas em suas fotos?
Olhei tanto, conheci o trabalho de tantos fotógrafos! A primeira fase de Bill Brandt (fotos do tempo de guerra nas ruas de Londres) foram as que mais me impressionaram antes de começar a fotografar. Gosto da fotografia inglesa. Com profunda emoção descobri, em 1974, o livro da fotógrafa americana Diane Arbus. Estudei seu trabalho e pensamento. Após muita reflexão defini meu caminho com clareza. Decidi: não quero, como ela, me envolver com a morte e a doença, mas sim com a vida. Anos depois, em Londres, o humor sutil de Tony Ray-Jones fez-me sorrir e continuar minha linha de pesquisa. Sou grata a tantos: Robert Frank, Elliot Erwitt, Koudelka, Friedlander. O ambíguo, o inusitado escondido até na imagem de um amador, me tocam. Mas, ao se fazer um click, nada, a não ser o sabor do fragmento de vidas vistas através do visor, é importante. A fotografia é um lampejo, reflete quem somos e como estamos naquele momento. Espelha nossos valores. Podemos também captar imagens do inconsciente coletivo. As influencias são misteriosas. Por exemplo: fiz uma foto de um velho dormindo com uma garota olhando-o da janela. Alguns acharam ser uma influência de Eugene Smith, mas só vim a conhecê-lo anos mais tarde. Com o tempo deixamos que a intuição flua e o mundo fica mais claro. As fotografias passam a ser influenciadas pela própria vida. Tornam-se mais subjetivas, mais pessoais. Adoro brincar com imagens, experimentar, aventurar-me. Sinto-me mais livre.
Você se definiria com um estilo de fotografar?
Isso já foi afirmado, mas deixo a outros essas interpretações. Quando penso numa síntese do que criei, percebo cada foto como uma nota sobre a vida, a falar da sombra ou da luz, da alegria, da dor, do mistério, da ação, do amor. Cada fase é o movimento de uma sinfonia. Sinto-me arquiteta, engenheira e operária, sob sol e sob chuva, uma fazedora de tijolos, tijolos-slides, tijolos-negativos. Parece que, a cada trabalho, recomeço do zero. A insatisfação e insegurança são companheiras constantes. A labuta é imensa. As horas passam, os anos passam… Por vezes desanimo, não vejo porque prosseguir, desajustada com o sentido do ofício, com as dificuldades de mostrar o trabalho, que aguarda, impávido, arquivado nas prateleiras de um centenário armário de família. É preciso determinação, persistência para prosseguir pelos caminhos de asfalto ou pó, para manter o entusiasmo, a alegria, a coragem. Hesito, resisto e dou mais um passo, sempre.
Por que a escolha da fotografia em preto-e-branco?A fotografia em cores lhe emociona?
Eu não escolhi a fotografia em preto-e-branco. Ela me escolheu. Lidei trinta anos com a fotografia, recolhendo imagens ou, nas horas de contemplação e calma, num quartinho de luz avermelhada, ao som do ar condicionado e cheiro de ácido acético. Não uso a velha linguagem masculina e agressiva: “disparando”, “tirando” fotografias. Prefiro colhê-las, como se fossem frutas ou flores. É como escrever poemas. A cor? Linda, apesar de ser tão mal explorada para chocar e vender glamour, artificialidade, mentira. Por vezes descubro imagens que captam sua beleza e sutileza, sua qualidade interior! Têm me provocado, cada vez mais, sentimentos e impulsos novos. Venho, desde que retornei a fotografar, tentado mais e mais compreendê-la.
Grande parte do seu trabalho fotográfico é centrado nas coisas que você viveu? Amigos, família, viagens… ou engajamentos políticos?
A fotografia é uma amiga. Sou uma viajante. Meu corpo é minha casa. Onde estivesse, lá nasciam imagens: Nova Iguaçu, Istambul, Chile, festas de família… Meu trabalho foi sendo criado a partir de algumas encomendas remuneradas, mas sobretudo no percurso do que vivi. Sim, por vezes meu trabalho é autobiográfico. Minha meta, nesta vida, é o encontro da paz, mesmo tendo necessitado descer ao inferno, anos atrás. Nunca me iludi que a encontraria em jogos políticos. Basta observar a história para vermos que o homem tentou, inutilmente, todas as formas de organização política no planeta. A exploração, injustiça, miséria, corrupção, o medo e as guerras permanecem. Nem ela, nem a economia, como são atualmente concebidas, poderão transformar o profundo e crescente caos em que estamos mergulhando, cada vez mais rapidamente. Quase toda a sociedade se degenera e a natureza responde ao que o homem lhe fez. Não há retorno. A resposta só pode ser encontrada numa nova consciência, expandida e aberta ao que verdadeiramente importa, o amor. Não no remendo dessa velha, surrada e decadente estrutura político-social.
Por onde passa a decisão de abandonar a fotografia e depois retornar?
Tudo passa. Por muito tempo a fotografia havia sido a paixão maior, que amenizava a dor e me ajudava a sobreviver. Em 1993, olhar para dentro tornou-se mais importante do que olhar para fora. A urgência de fotografar passou. Se não seguisse esse chamado estaria hoje estancada, fechada. Mudei do Rio de Janeiro para uma fazenda nas montanhas de Minas. Contemplava as estações, as imensas nuvens, o cristal das geadas nos verdes, o amanhecer glorioso apagando a cerração. Seis anos depois, enquanto ouvia a sinfonia Pastorale, de Beethoven, senti uma profunda convicção:Preciso tentar expressar em fotografia o que venho aprendendo, o contato com a natureza e a espiritualidade. Um novo ciclo se abriu com a imensa oportunidade de fotografar e conhecer palmo a palmo a região e o povo atingidos pela construção de uma hidrelétrica a quarenta minutos de onde moro. Assim voa a maravilhosa, inusitada, vida.
Que sugestões você faria a quem hoje quer fazer fotografia?
Se sinceramente, se profundamente você quer fazer fotografia, mergulhe em si próprio e fotografe, fotografe, fotografe. Não para sua própria satisfação, mas em glória à Vida. Fique íntimo da câmera, que se tornará uma extensão de seu próprio ser. Aprenda a contemplar, verdadeiramente fitar o que está diante de seus olhos. Olhar tem muitos e belos significados: velar, zelar, proteger, cuidar, interessar-se, amparar. Olhe pelo visor: entre você e o infinito está uma imagem. Só você a vê. Se quiser dá-la a outros, click. Ela depende de você para existir. Para navegar neste planeta magnífico, encontre a liberdade na criação. Supere seus medos. Supere-se. É preciso ousar. Deixe ruir o velho, para que o novo te penetre. Silenciosamente, seja o novo. Se você optou por se exprimir através da foto=luz grafia=escrita já deve ter desenvolvido a afinidade com a luz. Esse é o seu trabalho principal: tornar-se cada vez mais íntimo da luz. Ofertar-se, e às suas criações, ao Bem do planeta.
O que você gostaria de passar para os leitores desta entrevista?
Minha profunda gratidão por essa oportunidade de serviço.