Palavras afogadas

Poema afogado
Luz líquida

Flui
Sangue da terra
Remanso…
Mansa bruma
Nutre
 Etérea
Dá paz a retinas
Rasga a rocha
Circunda montanhas
Corre
Baila
Gargalha
De pedra em pedra
 Amarga água
Morre
 Assassina
 Mata
 Copiosa
Rega
Supre
 Para
 Capturada
Cai
Vertical
Pesada
 Por turbinas
 Cria a força
 Ilumina
 Volta ao rio
 Vai descansar no mar

 

Réquiem visual 

Hoje, pedras negras dormem sob águas paradas. Em 2002, o correr do rio, plantas, construções, cenas cotidianas de uma vida simples, desapareceram. Por isso ganharam importância: submergiram. Os mapas ficaram obsoletos. O planeta já não
é o mesmo, ganhou um lago de 200 km de perímetro para alimentar a Usina Hidrelétrica Funil. Geograficamente adequado para recebê-la, o local foi escolhido há décadas. Restam memórias.

PN45BMorando a quarenta minutos, atendi ao chamado daquele espaço a invocar o único socorro que poderia prestar-lhe: resgatá-lo em fotografias, perpetuá-lo. Não havia tempo para planejar, aguardar. Tudo tinha um sentido angustiante de emergência: a obra da hidrelétrica urgia, as árvores das matas ciliares começariam a ser cortadas e queimadas a qualquer momento. Eu precisaria correr recantos e colher detalhes antes da população atingida se mudar, as casas virarem escombros e os animais fugirem, morrerem ou serem resgatados. Visitei o local quase 90 vezes, fotografando até o reservatório se formar.

Mineira longe das Minas Gerais há 30 anos, colhendo fotos por Brasis, Américas e Europas, retornava. Passei dias em barcos, balsas, helicópteros, garupa em lombo de cavalos e rodando de automóvel entre verdes cobertos da poeira de estradas abandonadas, que margeavam rios. Precisava redescobrir minha terra, meu povo. Captar sua força, alma, seu ritmo. Decifrá-los.

Começava a aventura de compor um réquiem visual. Cruzei os rios Grande, Capivari e das Mortes de lancha por águas barrentas que não se misturavam às coloridas de azul e verde. Vida afora fotografara pessoas. Começava um canto a refletir memórias da natureza, das três pequenas comunidades de Macaia, Pedra Negra e Funil, das construções e dos gestos repetidos dia após dia, ano após ano, por seus moradores, visitantes, turistas, desportistas, rancheiros.
Envolta em respingos d’água entreguei-me ao desafio. Seria conduzida pelos fluxo da vida, o inusitado, a surpresa, a experiência anterior, indicações de moradores, de biólogos, e de duas pesquisadoras que convidara a participar do trabalho. O contrato fora assinado com o Consórcio Empreendedor AHE Funil e 300 filmes estavam a caminho. Faria malabarismos para serem suficientes.

Por não ter nada de “especial”, ali estava uma paisagem abandonada pelos fotógrafos. Necessitava ser representada por todo tipo de imagens. Eu não poderia fazer um documentário apenas pessoal num projeto daquela envergadura. Não poderia me ater à linguagem subjetiva. Seria uma pesquisa abrangente e múltipla, ora autoral, ora informativa. Optei pela diversidade de abordagens, como se eu fosse mais de uma fotógrafa. Ofereceria vários olhares aos espectadores. Pela responsabilidade de montar um arquivo para as gerações futuras decidi fotografar em preto e branco e a cores, com filme negativo e diapositivo, com duas Nikon 35 mm e uma Hasselblad XPan panorâmica.

Que assinatura teriam aquelas fotografias? A do amor, seriam enraizadas num olhar amoroso, direto. Descreveriam o que a intuição percebesse. Ofertei o trabalho à beleza. Fotografei como uma forma de oração. E orava: “Venham fotos para alegrar os homens, iluminadas do – oh! belo, tão relativo belo! Venham fotos de profundo silêncio, suaves como luz em flores. Venham fotos íntimas, espelhos da alma do povo”.

160px rio capivari panFui conhecendo aquela gente que ama a própria terra, que é feliz assim, na sua terra. Gente alegre, acolhedora, plena de histórias, crenças e superstições. Pescador, roceiro, cozinheira, anjinho, comerciante, devoto, estudante, fazendeiro. Trabalhadores firmes na labura do ganha pão. Educação quase nenhuma, casas sem livro, mas corações solidários. Aceitaram nossas diferenças, me aceitaram em suas vidas.

Dormi em seus colchões, estive em festas, procissões, acampamentos, bares, currais. Dancei o Congado, quase a tocar seus rostos com a lente. Com Lia do Tião tomei cafezinho com queijo e chupei laranja no quintal. Com tia Nêga comi quitutes de fubá. Longe da especulação das bolsas, viviam o luxo da água de mina.

O local guardava sua identidade e a história dos antepassados. Ora mostravam-se perdidos, entre medos, lágrimas e angústias. Ora olhavam profundo. Alguns saboreavam o azedume da perda, outros riam com comentários espirituosos.

Finda a  vertiginosa transformação, as águas do grande lago encantam. Os moradores ganharam três comunidades, igreja, ruas de asfalto, ônibus na porta, a ponte de Macaia. Quando o primeiro ônibus a atravessou, riam, batiam palmas, pois antes cuzavam o rio em balsas.

Habituados a viver em casas, fazendas ou sítios espalhados pelas encostas a beira rio, experimentam a vida urbana em três novas comunidades de prancheta em Ijaci, Macaia e em um elevado acima da ponte do Funil submersa, construídas pelo Consócio AHE Funil. Exilados de uma paisagem amada, se esforçam para criar novas raízes.

Tudo passa. Nosso tempo também passará. É a Lei Universal. Centenas de anos, milhões de anos… Ontem a área foi mar, hoje uma represa, no amanhã de um tempo indefinido ninguém sabe. As rochas terão memória? Lembrarão que as corredeiras do rio Grande jorravam sobre elas, velozes, até pararem e…

Do antigo restam fotos, palavras e pensamentos, fragmentos de vida ofertados àquele pedacinho da mãe Terra. Um dia, assinalando uma fotografia e um ponto distante no lago, alguém contará para alguém: Eu morei ali… Era assim…

 

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